Por: *Aroucha Filho
Matinha é protegida por São Sebastião, seu padroeiro, santo guerreiro como o povo daquela terra.
De todas as festas religiosas, ou não, a exemplo do Sírio de Nazaré para os paraenses, a festa de São Sebastião era a mais importante festa de Matinha, superando até as comemorações do natal.
Ainda não havia paróquia em Matinha. Os atos religiosos eram presididos por padres da Paróquia de Viana, que, àquela época, também não era ainda Diocese. Por essa razão, a festa de São Sebastião ocorria no dia 06 de janeiro, reservado o dia do Santo, 20 de janeiro, para as festividades da Paróquia de Viana.
Essa antecipação da data comemorativa em nada afetava a fé, a devoção e o entusiasmo dos devotos. Já no segundo semestre do ano antecedente começavam os preparativos para essa grande festa. O assunto palpitava nas conversas familiares, os organizadores da festa iniciavam as reuniões para o planejamento e preparativos para esse grande dia. Era o dia da manifestação de fé, de agradecer as graças recebidas, de pagar as promessas, realizar batizados e de fazer a Primeira Comunhão.
Os três meses que antecediam o da festa, agitavam a paupérrima economia do Município, aquecendo-a nesse período.
Algumas casas residenciais passavam por reformas. Outras, por simples pintura, demandando mão de obra especializada. Aqueles que faziam suas poupanças criando aves e animais de pequeno porte, cuidavam de transformar esses ativos em moeda corrente.
As “Casas de Forno”, onde a mandioca era transformada em farinha, atingiam o ápice de utilização. Todos os dias se fazia fornadas e mais fornadas de farinha, que eram depois medidas em alqueires, acondicionadas em cofos de pindoba forrados com folhas de guarimã, acondicionando o produto nos paneiros, e, deixando-o assim, pronto para comercialização. Paneiro era a designação dada a um cofo contendo farinha de mandioca, o qual pesava trinta quilos.
As lojas de tecidos, nesse período registravam o maior volume de vendas do ano, com a comercialização de grande quantidade de cortes: de linho Braspérola, mescla Santa Isabel, naycron, tergal, tricoline, popeline, seda, volta ao mundo, fustão, chita e outros. Consequentemente, havia muito serviço para costureiras e alfaiates que confeccionavam as indumentárias a serem utilizadas no dia 06 de janeiro, os quais varavam a noite em intermináveis serões para cumprir os compromissos na conclusão das roupas encomendadas.
Às vésperas da festa, a agitação nas residências era grande. Começavam a chegar os convidados. Geralmente, parentes que moravam na zona rural (centro e campos), em outros municípios, e na Capital do Estado.
Em outra frente, as cozinheiras iniciavam as providências do banquete a ser servido no dia da festa. Chegavam de outras localidades renomadas cozinheiras, hábeis em confeccionar saborosos banquetes. De Viana, papai contratava a senhora Benedita Serra, prendada em elaborar deliciosos pratos, verdadeira chefe de cozinha.
Os perus, que sempre morrem de véspera, eram as primeiras vítimas. Alinhava-se o abate dos porcos, que haviam sido engordados para ser sacrificados na madrugada da festa. As mais destacadas galinhas do terreiro, nesse dia amanheciam confinadas no galinheiro para evitar que, pressentindo suas sinas, fugissem do quintal. Os demais provimentos alimentícios para esse dia eram devidamente encomendados aos fornecedores.
Nesses idos, antes do abate dos animais de médio e grande porte, era prática comum colocar-se o produto à venda, oferecendo “postas” de carne em encomendas, para evitar sobras, uma vez que, além da salga, não havia outra maneira de conservação dos alimentos. Era assim o dia que antecedia o festejo do santo padroeiro.
No dia da festa, todos acordavam com uma alvorada animada pela principal orquestra da região, a do senhor Piteira, de Viana, que sob contrato prévio vinha abrilhantar os festejos tocando no improvisado coreto do largo. Foguetes de tala chiavam e estrondavam, misturando-se ao som do repicar dos sinos no alvorecer do grande dia.
Nas casas, todos cuidavam de se paramentar, vestindo as roupas novas, calçando sapatos bem engraxados, sem importar-se com os calos que, pelo desuso, poderiam causar.
As moças, esperavam ansiosas pelos passeios e flertes no Largo, onde aproveitariam a oportunidade de exibir seus sensuais vestidos “tubinhos” ou suas saias plissadas, com os exuberantes cabelos em “permanente”, que era a moda da época.
Lá pelas nove horas, o largo da igreja ficava repleto de gente. Aqueles que oportunizavam esse dia para angariar com seus pequenos negócios alguma renda, já estavam posicionados em seus tradicionais espaços. As doceiras, com seus tabuleiros repletos de variedades de doces; as bancas de jogo de “caipira”; o inusitado jogo do preá; os retratistas, com suas máquinas “mão no saco”, que faziam revelação instantânea dos filmes, gerando retratos que registravam esse grande momento. Os botequins, dois no máximo, erguidos com pequenos esteios de madeira verde, tapados e cobertos com palha de palmeira babaçu, equipados com geladeira Gelomatic, com fonte de energia a querosene, provavelmente da marca Jacaré, eram devidamente instalados próximo da casa do senhor Isaías, mais ou menos onde fica hoje a Casa Paroquial.
Em frente aos botequins, ficava a enorme mangueira da Praça da Igreja, tão útil aos frequentadores dos botequins que aproveitavam sua agradável sombra para tomar suas geladas cervejas, Brahma ou Antártica. Naqueles tempos, pelas nossas bandas só existia essas duas marcas.
A orquestra retomava a sua apresentação tocando músicas de sucessos do rádio e executando dobrados, que, pelo ritmo e excelência na execução, chamava a atenção de todos os quermessianos.
“Dobrado” é um estilo musical derivado das marchas militares muito executado em comemorações e festas, que se popularizou na metade do século XIX.
Amarrados ao pé de pau d’arco que ficava em frente de onde hoje funciona a lanchonete de Joca, ficavam, em corda curta, aguardando a hora do leilão, os bonitos novilhos dados em pagamento de promessas por graças alcançadas com a intercessão de São Sebastião.
Essas e outras prendas, doadas para o festejo como pagamentos de promessas seriam apregoadas pelo leiloeiro “oficial”, senhor Francisco Santiago de Oliveira – o Chico Cearense -, que era também um dos organizadores da festa. O leilão era uma atração à parte, movimentadíssimo e conduzido magistralmente por seu Chico Cearense.
Por volta das onze horas, dava-se início às cerimônias religiosas, que principiavam com a celebração da Santa Missa. Com a pequena igreja apinhada de gente, era intenso o calor e, consequentemente, o desconforto. Só mesmo a fé, a devoção ao Santo, para segurar a todos no recinto.
Alguns adolescentes, que iriam receber a Primeira Comunhão, desmaiavam, em virtude do longo período em jejum. Pelos cânones da Igreja Católica era necessário no mínimo três horas de jejum antecedentes à Comunhão.
Pela liturgia praticada nesses tempos, a missa era “tridentina”. Isto é, celebrada no rito latino, em latim, com o Padre de frente para o altar-mor e de costas para os fiéis, o qual iniciava a celebração com o invariável: In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. Ao que o coroinha respondia: Amen. -Introibo ad altare Dei. – Ad Deum qui laetificat juventutem meam (Entrarei no altar de Deus, o Deus que alegra a minha juventude). E continuavam… Os fiéis não participavam desse diálogo, pois a língua era estranha para suas percepções.
Após a missa, padre já irritado, suado, metido naquela desconfortável batina, iniciava a administração do batismo.
Os padres, por natureza, e talvez estimulados pelo poder eclesiástico que desfrutavam, impacientes passavam “carões” naqueles padrinhos semi-embriagados, ou madrinhas indevidamente trajadas para o ato do batismo.
A roda de batizandos, formada imediatamente após a celebração da missa, era diametralmente grande, pois a ela acorriam crianças da sede e de todos os povoados do município, conduzidos que eram por seus pais católicos na busca de livrar os filhos do paganismo, tornando-os cristãos.
O vínculo formado naquela roda de batismo era muito forte na fé. O ato do batismo, os santos óleos recebidos, o sinal da cruz assinalado na testa e no peito dos batizandos, a água benta derramada à luz da vela (vida) nas cabeças das crianças era tudo de uma simbologia emocionante e indescritível. Dali sairiam os novos cristãos. Mas, sobretudo, ali eram consolidados indestrutíveis os laços de compadrios e apadrinhamento, que eram fortes e muito respeitados, pois com eles expandia-se o conceito de família e compadres e afilhados passariam a pertencer a uma só família, independentemente da origem biológica.
De todos os celebrantes da Festa de São Sebastião que assisti, o Padre Heitor Piedade foi inegavelmente o melhor. Padre bonito, carismático, bonita voz e grande orador. Sua homilia todos os fiéis ouviam em absoluto silêncio e com muita atenção, pois era vibrante e emocionante.
Padre Heitor, tempos depois, deixou a batina. Casou-se, formou-se em Direito e é um renomado advogado, professor universitário, palestrante com vários livros publicados. Ainda vivo, reside no Rio de Janeiro.
Na parte vespertina, aproximadamente às 16 horas, formavam-se os fiéis em caudalosa procissão a se arrastar pelas ruas da cidade. O andor com o Santo, no final das filas, todo ornamentado com flores, cuidadosamente colhidas e arrumadas pelas irmãs da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, que no trajeto teriam seu honroso espaço ao lado do andor, enfileiradas ladeando o Santo, com suas vistosas “Insígnias”, cordão de larga fita vermelha com o símbolo do Sagrado Coração de Jesus. Praticamente todas as senhoras católicas da comunidade pertenciam a essa congregação. Homenageio-as agora citando os nomes das feições que guardo na memória: Vó Esculástica, Dona Dica, Maria Carneiro, Dona Furtado. Ao lado da minha mãe, que também ostentava sua insígnia, eu acompanhava todo o trajeto da procissão. Atrás do andor vinha a orquestra tocando os hinos, marcando o compasso pelo grande “tuba” que me prendia à atenção, por ser um instrumento que fugia à anatomia dos demais.
O andor já tinha os seus tradicionais carregadores. Esse era um status reservado a alguns fiéis mais devotos. Os jovens rapazes, talvez habilitando-se para um possível ingresso nessa casta, disputavam uma oportunidade para conduzir o andor.
O trajeto da procissão saía da Igreja, pela direita seguia na Av. Major Heráclito até o canto da Prefeitura, descia a Coronel Antônio Augusto, dobrava à esquerda na Afonso Matos, indo até o Posto e seguindo pela Rua João Amaral da Silva até a Praça, dobrava o canto de Benedito Veloso, e daí, pela Av. José Sarney regressava para a Igreja.
Ao adentrar no Largo da Igreja, para mim a parte mais emocionante de toda a festa, os sinos começavam a repicar, os foguetes estourando. Então, puxados pela voz bonita e potente do Padre Heitor, os fiéis entoavam o hino “EU CONFIO EM NOSSO SENHOR…”. Vinham as palmas e os vivas a São Sebastião e encerrava-se a procissão.
À noite o movimento esvanecia-se. Apenas havia algumas atividades religiosa na igreja, uma ladainha, cânticos, e o encerramento das cerimônias religiosas conduzido pelos organizadores.
A festa encerrava-se mesmo com as realizações dos bailes, geralmente três, animados por orquestras, que aconteciam em casas residenciais ou prédios públicos. O acesso a esses bailes dava-se conforme a cor da pele, hierarquizados verticalmente, na ordem descendente da cor da pele mais clara para a cor mais escura.
Essa era a grandiosa festa matinhense, que teve seus tempos áureos na década de 50/60. Com a chegada dos padres europeus, principalmente dos italianos, em missão na diocese de Viana nos meados dos anos sessenta, por ações desses padres que ocuparam várias paróquias na baixada maranhense, inclusive Matinha, a festa foi definhando até atingir o status festivo atual, em detrimento da nossa cultura. Glorioso Mártir São Sebastião, protegei-nos!