Artigo de João Carlos: Dicotomia quebrada, elucubrações sobre a história política de Matinha

João Carlos da Silva Costa Leite. Foto: Reprodução.

De acordo com o dicionário Houaiss, dicotomia é divisão em duas partes iguais; existência de dois elementos essenciais; repartição de um conceito em dois outros. Ou seja, guardam no fim das contas, a ideia de dualidade. Desde sua emancipação política, no ano de 1949, Matinha apresentou apenas num mandato eletivo, o sentimento de unicidade, quando escolheu em sufrágio popular, seu primeiro prefeito.

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A partir da segunda eleição, uma feroz disputa entre dois grupos políticos antagônicos, fenômeno aliás verificado em todas as cidades da nossa região, iniciou-se, perdurando por anos e processos eleitorais a fio. Geração após geração, fomos ensinados, doutrinados, a escolher candidatos de uma ou outra agremiação, representados por um lado, pela família responsável por nossa emancipação, e do outro, pelo ajuntamento formado logo após a decisão do primeiro administrador.

Proporcionou-se então figadal disputa, bem como o revezamento durante mais de 60 anos no comando do município, por candidatos destas duas famílias. O curioso é que mesmo em eleições não municipais, quando ambos os lados respaldavam quase sempre quem estava no poder estadual, esta divisão permanecia real, presente, com o eleitorado votando, cantando vitorias, ou chorando derrotas, em função da atuação dos deputados estaduais, federais, ou senadores apoiados por seus líderes. Era um digladio impressionante, com ódios e ressentimentos sendo cevados.

Aprendíamos, homens e mulheres, ainda em tenra idade, a ver sempre pela ótica negativa ao adversário, e isto se estendia até a vida adulta, ou aos 18 anos; e após a constituição de 1988, aos 16, quando podíamos efetivamente depositar estes sentimentos nas urnas, em forma de sufrágio. No entanto seguindo vetores de desobediência, insatisfações, benefícios, princípios inerentes a condição humana, parcelas importantes da população, a partir principalmente da década de 80, iniciou movimentos migratórios intergrupos, passando eleição após eleição, a integrar as hostes do inimigo. Nesse sentido, as pessoas que em um pleito haviam composto em uma das partes litigantes, no próximo, poderia estar com a outra.

Era paradoxal: os dirigentes permitiam, não se importavam, ou não conseguiam segurar, que uma imensidão de pessoas se deslocassem do seu grupo político para o outro, sem muita insatisfação, talvez na perspectiva de que o aliado de hoje, poderia ser adversário de amanhã, e vice versa. No entanto, em que pese essa por vezes frenética movimentação, as bases, os fundamentos, o âmago dos dois clãs, permaneciam impassíveis, cada um defendendo seu legado político. Convém anotar, que nas cidades circunvizinhas, mesmo as que haviam sido emancipadas em 1994, uniões entre as greis já haviam sido efetivadas, estando Matinha, como o último bastião dessa particularidade.

Outro fato digno de nota, é que na terra das mangas, exceto em quatro oportunidades, o embate eleitoral foi efetuado tête à tête. Ou seja, só com dois candidatos, cada um representando seu clã respectivo. Corria a boca pequena, nos bastidores, a teoria conspiratória, ou não, de que existia um acordo tácito entre os próceres, para que unicamente estes pudessem viabilizar e ocupar a ordem partidária, sendo a alternância uma consequência inexorável. Verdade ou mito, o fato é que mesmo quando nas vezes em que alguém se atreveu a desafiar o status quo, colocando a disposição dos munícipes, uma alternativa, não conseguiu repetir, proporcionando a chamada terceira via, pois no pleito posterior, sua candidatura era inviabilizada, voltando a cidade a situação anterior.

Esse ambiente maniqueísta começou a imergir a partir de 2012, quando um dos lados das oligarquias que estava no poder municipal, podendo lançar-se a reeleição, abriu mão desta, pondo como candidato um jovem professor, que fora seu secretário de finanças, na tentativa de conter o opositor, que seguindo a corrente histórica, estava muito forte. Este estratagema, convém dizer, já fora utilizado em outras oportunidades pelas duas corporações. Tratava-se de uma honrosa saída, quando alguém que estava ali, não pertencente ao núcleo sanguíneo do grupo, no intuito de representá-lo em eventual e/ou já consolidada perda. Isto abriria espaço para que no próximo embate, o ciclo recomeçasse.

Algo deu errado, diferentemente dos candidatos anteriores, que serviam para suprir um evento momentâneo, resignando-se ou sendo pressionados a não concorrerem numa segunda vez, o jovem professor resolveu encarar a situação, e mudar a roda do destino. Embora inelegível, colocou sua esposa como candidata, obtendo considerável vitória em 2016, vindo esta ser a primeira mulher eleita diretamente no município. Após a importante conquista, nada indicava mudança no horizonte político da cidade, parecia que teríamos mais um round da já conhecida conjuntura ao qual Matinha se acostumara a assistir.

De repente, eis que surge um racha no grupo detentor do poder, vislumbrando algo que parecia impossível aos olhos da população: a ruptura, e o efetivo afastamento das hostes governistas dos membros da família que simbolizava desde sempre as disputas, e era representada no governo pelo vice-prefeito. Este fato histórico e inédito, deixou a todos em polvorosa. Parafraseando a música de Chico Buarque, Geni e o Zepelim, “a cidade se quedou paralisada…”. A partir do episódio inusitado, redundou a eclosão daquilo que alguns somente sonharam, o surgimento de um núcleo que pudesse fazer frente a dicotomia até então existente, com possibilidades de mudar o quadro político.

O ano de 2020 está sendo surpreendente em diversos aspectos. Em Matinha as surpresas foram intensas e alvissareiras, a briga entre o grupamento que estava no poder permaneceu, ganhando desdobramentos nunca vistos na história do município. Começava a tomar contornos de realidade o sonho da quebra da dicotomia. E ela veio, de forma mais fortuita que todos imaginavam. Incomodados com a gestão da prefeita no primeiro mandato, os dois clãs resolveram, ao invés de lutarem solitariamente, unir forças, acontecimento inédito, com proposito de derrotá-la. Ao final do dia 15 de novembro de 2020, decretou-se a verdade: reeleição com acachapante vitória sobre o segundo colocado, num pleito bastante polarizado, que ainda teve uma terceira candidatura concorrente.

O processo histórico é dinâmico, constante, perene, desmentindo o filósofo Francis Fukuiama, que em 1989, decretara erroneamente o fim da história. Em Matinha virou-se uma importante página, paradigmas soçobraram: a eleição e reeleição da primeira mulher, o ineditismo da junção de dois grupos políticos adversários.

Elucubrações, questionamentos, inevitavelmente aparecem. Como estará o cenário já em 2022? O grupamento detentor temporariamente do poder conservará sua unidade? Os dois grupos que se uniram permanecerão juntos? O terceiro candidato manterá constância, tornando realidade, o que não foi alcançado pelas outras experiências, a verdadeira terceira via, ou sucumbirá tal qual os que o antecederam? Estará em fase embrionária uma nova dicotomia?

2024 nos trará as respostas. O tempo é senhor da razão, oxalá possamos estar ainda vivos, para podermos presenciar e participar deste novo momento.

João Carlos da Silva Costa Leite, nascido em Matinha, bancário aposentado, estudante do curso de Filosofia da UFMA. Membro fundador da AMCAL, Academia Matinhense de Ciências , Artes e Letras onde ocupa a cadeira 17.