Artigo de João Carlos: Obsessão semiológica, reflexões sobre a linguagem de um povo

João Carlos da Silva Costa Leite. Foto: Reprodução.

Sou declarada e absurdamente apaixonado pelas palavras, formas de linguagem, vocabulários, sotaques e/ou quaisquer modalidades de expressão da comunicação verbal, oral. Desde criança, (eu já possuía essa postura wittgensteniana sem conhecer o conceito), punha-me embevecido escutando as múltiplas maneiras que gente oriunda de povoados, cidades vizinhas, se pronunciavam quando vinham consultar com Tchem, ou para visitar papai, jogando conversa fora, falando sobre pescarias, solicitando algum serviço.

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Essa minha, digamos, obsessão semiológica, possuía um quê de contradições, pois ao mesmo tempo em que sentia regozijo, aprendendo e apreendendo novos termos, decorrentes do conhecimento sacro/ erudito das pregações na IPIB de Matinha, do presbítero José Conceição Amaral, do seu irmão, o reverendo Raimundo Estevão, bem como dos pastores que sempre nos visitavam, comumente inseridos em prazerosas e reconfortantes homilias; também babava de contentamento, com frases, vocábulos desconhecidos, bisonhos, hilários, intraduzíveis, vernáculos quase alienígenas, proferidos por pessoas mais simples, gente do povo, sem nenhum estudo formal, que circundavam meu dia a dia.

Os 8.516.000 km quadrados do Brasil, constituem gigantesco território, quase um continente. Concomitante a essa extensão, desenvolveram-se sistemas linguísticos bastante diferenciados entre si. Desse modo, um falante paulista, tem o seu jeito de denominar o mesmo animal, arvore, doce, comida, acidente geográfico, etc.. distintamente a um paraense, gaúcho, goiano, paranaense. Essa heterogeneidade filológica trouxe ao “português brasileiro” inigualável diversificação, permitindo que verdadeiros mini idiomas fossem construídos.

Os regionalismos se imiscuem no cotidiano da população, enriquecendo sobremaneira essa língua, que de portuguesa só tem o nome, pois as influências estrangeiras, representadas por inúmeras etnias, bem como dos povos autóctones, descaracterizaram, de modo positivo, a “ última flor do Lácio” , como cantou Camões, no clássico Os Lusíadas, que as vezes torna-se necessário um tradutor, para o entendimento entre brasileiros e outros lusófonos. No Nordeste, embora não pareça, ocorrem assimetrias internas grandes. Consequentemente, o baianês, piauiês, pernambuquês, paraibês, etc… possuem seu glossário próprio. Sendo assim, o mesmo objeto em alagoês, pode ter o nome completamente dispare em cearensês.

Aqui no Maranhão, também temos idiossincrasias, denominamos maranhês. As desigualdades semânticas entre os habitantes da ilha de São Luís, do sertão, do sul e do norte do Estado são profundas, identificando pelo tom das palavras, das sentenças silábicas, a área de onde somos provenientes. Na Baixada, convergimos e divergimos: Nos une o sotaque, um modo de se expressar linguodentalmente em fonemas onde existam “de, te, ti/ di”, . Exteriorizamos esses vocábulos com uma batida forte, seca, quase surda, muito parecida com a maneira de falar de habitantes da maioria dos estados nordestinos, diferentemente de São Luís ou outras regiões do resto país, em que ao reverberá-los, aparece um “h” imaginário, ou arrastado. Esse mesmo fenômeno acontece com o “ne/ni” .

Não foram poucas as galhofas, bullyings, sofridos por baixadeiros, especialmente os matinhenses, em função do nome do município, quando ao mudarem para a capital, com o intuito de continuar os estudos, e lhes era perguntado, a guisa de apresentação, no primeiro dia de aula, qual sua cidade originária. Após a resposta MaTInha, gargalhas ecoavam na sala, transformando aquele momento de confraternização, num verdadeiro pesadelo de ironias, piadas, gozações, sarcasmos.

Esse mecanismo perverso é de tal modo inibidor, que quase sem perceber, a medida que o tempo passa, talvez por temor de continuar sendo visto como diferente, ou até para manter conversações e diálogos sem interrupção, pois o preconceito torna-se tão arraigado, que a maioria dos interlocutores relacionam o sotaque a carência ou dificuldade intelectual, vai havendo uma diminuição e gradual aclimatação ao modo de pronúncia ludovicense

As novas gerações já não têm mais esse problema, devido a penetração da TV, dos vídeos da internet, da globalização que esses veículos proporcionam, e até mesmo avisos dos mais velhos, chegam na ilha do amor, já se exprimindo no “the” e no “nhe”. Possuímos alguns verbetes que são usados notadamente na região. Esse aspecto é bem catalogado e explicitado no livro “ O dicionário do Baixadês”, lançado pelo bacharel em direito e escritor, natural de Peri Mirim, Flávio Braga, nosso Câmara Cascudo

Lembrando o poema de Carlos Drummond de Andrade, “Canção Amiga”, na estrofe “minha vida, nossas vidas, formam um só diamante, aprendi novas palavras e tornei outras mais belas.”, o “idioma” baixadeiro é pujante, intenso, não cabendo obviamente num único texto. Sem a pretensão de exaurir o tema, levantarei alguns nomes e ditados que chamam a atenção, ao meu juízo, participando do universo idiomático maranhês, sendo mais específico, do baixadês. Enveredando ainda ao espaço geográfico de Matinha, a terra das mangas.

Para melhor entendimento grafarei o vocábulo, em seguida escreverei o seu correspondente, sentido, no português mais corriqueiro, conhecido. Afulemado, afobado; oraça, desmaio; disgrota, coisa ruim; danisco, levado; pisunhar, bagunçar; esquentamento, DST; pulitrica, estripulia; cristé, reprimenda; farnisia, inquietação; laquibuque, palpitação no coração; fulustreco, fulano; marmanhar, pedir encarecidamente; muvido, chocho; polino, qualhira, homossexual; roscrofe, anus; turica, diarreia; renar, refletir, pensar; panema, azarado; trimbado, bêbado; baldiar, vomitar; inquistar, teimar; gato, amante; lacolá, ali perto;

Temos ainda os ditados, frases curtas, ditérios populares, provérbios, alguns bem setorizados, refletindo, mostrando lugares, pessoas, situações:” Dor de veado”, dor na boca do estomago; “tô Zé Roxo”, sem saber nada; “pelou uma porca”, quase acontecia, levou sorte; “ tabua de bacuri”, surdo; “cresce como rabo de cavalo, pra baixo, diminui; “nem rilha”, nada; “ quebrar pau no ouvido”, destratar; “buragica torceu”, a coisa pegou; “como terra”, muito; “ com a porca de Erinho”, muita fome ; “cueira verde”, azarado; “arroz de planta”, pessoa especial; “leite de onça”, difícil; “caixa prego”, distante; “mangá de Arlindo”, cemitério; “cachorro canhoto”, instável; “cavalo batizado”, violento. “bem aí”, perto. Esses são apenas dois aspectos do belo e envolvente universo filológico que nos circunda. Poderia mencionar muitos outros, por exemplo, o bom número de sinônimos e palavras correlatas quando o assunto é pescaria, peixes, arvores, culinária, ou atividades rurais, entre uma e outra cidade baixadeira

Bagrinho, este famoso e saboroso peixe da água doce, que degustamos no vinho de coco babaçu, é assim chamado nos municípios de Matinha, Viana, Penalva, São João Batista, Olinda Nova; já em Arari e Vitoria do Mearim, denominam-no capadinho; tendo ainda a variante anojado, em Anajatuba.  Nas cidades que margeiam o rio Mearim, o nosso carrau, é corró; boi acari, bodó; cascudo, tamatá; acará preta, carambanja; patacho, catana; cauaçu, cuaçu; canoa movida a motor, garité.

Discorrer sobre modos de comunicação do nosso povo, buscar sua etimologia, é de inestimável valor pra mim, projeta planos futuros, com o vetor de trazer a memória lembranças, que mesmo estando distantes no tempo, continuam povoando meu mundo, transbordando- o de eternas saudades. Torna-se imperioso um estudo aprofundado, com a confluência dos diversos atores que amam a temática e dela fazem parte (órgãos públicos, secretarias de cultura, academias, fundações, professores/alunos de história, filosofia, sociologia ,etc), bem como posterior resgate, preservação e divulgação deste importante acervo linguístico .

Ele é parte da nossa cultura, e um povo que não conhece sua história, seu passado, está fadado a um incerto presente, e desastroso, quiçá inexistente, futuro.


João Carlos da Silva Costa Leite, nascido em Matinha, bancário aposentado, estudante do curso de Filosofia da UFMA. Membro fundador da AMCAL, Academia Matinhense de Ciências , Artes e Letras onde ocupa a cadeira 17.